Roberto Ghione
Para abrir e fechar, entrar e sair, iluminar e ventilar, se aproximar e participar do espetáculo da vida cotidiana acontecendo na rua, portas e janelas furam muros construídos no exato local que divide e, ao mesmo tempo, integra os espaços público e privado, os mundos social e individual, as vidas urbana e doméstica.
Pequenos gestos e soluções que a própria arquitetura oferece permitem, em muitas circunstâncias, resolver o urbanismo com mais eficiência e sensibilidade que a planificação tecnocrática de grande escala. Portas e janelas ritmam planos maiores, plenos de urbanidade, provocadores de diálogos e encontros, diafragmas entre a exposição e a intimidade, elementos que afirmam o significado da vida em sociedade. Aberturas que, além da função doméstica, transformam-se em vitrines, pequenos comércios, padarias, botecos e outros usos e serviços que a dinâmica da vida desenvolve e reforça o caráter social e integrador da cidade.
A urbanidade dessa arquitetura ainda é possível encontrar em pequenas cidades preservadas ou distantes da voracidade imobiliária, onde é provável vivenciar contatos sociais, manifestações solidárias e espaços públicos vivos e agradáveis, configurados por edifícios e casas singelas e de extrema nobreza urbana. A simplicidade desses gestos define um conceito, que levado a construções de maior complexidade, se manifesta em fachadas ativas e na presença dos “olhos da rua”, que garantem a segurança, a caminhabilidade e a apropriação dos espaços urbanos.
A combinação de capitalismo e desigualdade provoca a negação do urbanismo, resultando difícil qualificar as atuações profissionais. Retomar o conceito de cidade na produção de arquitetura virou uma utopia?
A realidade parece validar a produção incitada por demandas sociais que revelam uma cultura individualista, dominada por critérios mercadológicos. A crítica profissional deve promover mais urbanidade nos projetos e menos construções divorciadas do espaço social, mais visão solidária e integradora e menos concepções excludentes, mais consciência e sensibilidade na solução do ponto de contato entre os domínios privado e público e menos submissão ao mercado
Considerar a urbanidade na matriz da arquitetura é um desafio que implica um processo civilizatório, dependente de uma evolução política da sociedade que promova cidadania para a população carente. As oportunidades que se apresentam estão vinculadas às atuações nos centros subocupados das grandes cidades, nas periferias improvisadas e nos programas de habitação social.
Qualificar novas urbanizações com fachadas ativas, superar o conceito de “conjunto habitacional” de uso residencial exclusivo nos programas de governo, substituir a ideia do “edifício objeto” pela de “configuração do espaço urbano”, desalentar recuos frontais e laterais (que estendem a infraestrutura urbana e estimulam a construção de muros, grades e portões), resolver estacionamentos e guardas de veículos sem agredir a paisagem construída, evitar a monotonia repetitiva, estudar tipologias diversas adaptadas à cultura, topografia, clima e orientações, valorizar a arquitetura para grupos sociais carentes, são desafios que se apresentam, dentre outros, para retomar um processo integrador e civilizatório desde a própria arquitetura.
Foto: Roberto Ghione
Roberto Ghione, Arquiteto, Especializado em Crítica Arquitetônica, Preservação do Patrimônio e Planejamento Urbano. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados. Presidente do IAB PE 2017/19. Vice-presidente do IAB Região Nordeste. Coordenador da Comissão de Política Urbana e Habitação Social do IAB.