O Instituto de Arquitetos do Brasil e a cidade que desejamos
Carta às candidatas e candidatos a gestores e legisladores municipais, ao pleito de outubro de 2024
O Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) tem uma história centenária e, mais uma vez, reúne sua experiência e oferece propostas arquitetônicas e urbanísticas aos programas eletivos de candidatas e candidatos aos cargos de gestores e legisladores municipais. Com essa atitude, o IAB busca implementar políticas públicas solidárias, generosas e inclusivas, que melhorem a vida dos cidadãos por meio do planejamento urbano e regional.
O período que antecede as eleições municipais renova os desejos de aprimorar nossas cidades. Esses desejos podem se tornar realidade caso haja vontade política e o compromisso público com instrumentos jurídico-legais em vigor e aptos para promover cidades seguras, geridas democraticamente e com igualdade de oportunidades para todos os cidadãos. Uma vez aplicados, esses instrumentos jurídico-legais podem se desdobrar em novos mecanismos de regulação e fiscalização.
A cidade pertence aos cidadãos. Interesses econômicos privados não podem prevalecer sobre o bem maior da comunidade. Infelizmente, tais interesses conseguem se disseminar nas estruturas de decisão. A triste consequência é que a maioria das cidades do país carece de urbanidade. Isso atrasa o nosso processo civilizatório e impõe o desafio histórico de superar as desigualdades que resultam em conflitos sociais e urbanos. Esse é, sem dúvida, o supremo compromisso que as eleitoras e eleitores esperam e desejam daqueles que foram e que venham a ser eleitos.
Desde as últimas eleições municipais, as cidades brasileiras convivem com os impactos causados por flagelos climáticos cada vez mais vertiginosos e constantes. Basta-nos lembrar a seca em Manaus, e das enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul, no Sul da Bahia ou na região serrana do Rio de Janeiro, cujos impactos mataram pessoas, destruíram patrimônios públicos e privados e abalaram estruturas urbanas. Esses exemplos eloquentes nos permitem afirmar que outros eventos geo-hidrológicos virão, só não se sabe quando e em que intensidade.
Cada vez que um novo desastre climático se instala, as cidades atingidas costumam perceber que não dispõem de políticas públicas e de planejamento para aquela emergência. Resta-lhes improvisar soluções que remediem os infortúnios do momento, sem prevenir os danos do futuro. As adversidades do clima obrigam ao planejamento territorial e urbano que garanta a qualidade do ambiente e diminua os malefícios das novas crises. Cabe ao gestor e ao legislador, em diálogo com a sociedade, estabelecer medidas preventivas e curativas em seus municípios, observando, com rigor, as respectivas legislações aplicáveis.
Baseado nesses princípios, o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) propõe:
- Para promover resiliência urbana
1.1. Incentivar estratégias participativas na elaboração do desenvolvimento territorial-urbano, com base no Decreto Federal nº 12.041, de 05 de junho de 2024, que determina os objetivos do Programa de Cidades Verdes Resilientes;
1.2. Instituir Comitês Científicos permanentes e multidisciplinares, que se articulem aos órgãos públicos, a fim de propor meios para diminuir os danos das crises climáticas;
1.3. Incluir novos instrumentos no conteúdo dos Planos Diretores Municipais e nos demais mecanismos de intervenção territorial, que permitam obter equilíbrio socioambiental, reduzir vulnerabilidades e requalificar o território das cidades;
1.4. Fortalecer e capacitar o quadro técnico dos municípios, garantindo a presença de um número de arquitetos e urbanistas proporcional à população;
1.5. Garantir que as funções de planejamento urbano, licenciamento e fiscalização mantenham-se em um mesmo órgão administrativo, territorializando o exercício do planejamento, mas estabelecendo interface com o organismo responsável pela elaboração, implementação e localização das atividades econômicas no território, tal como preceitua a Constituição brasileira;
1.6. Estabelecer critérios específicos de uso e ocupação do solo e das atividades econômicas de modo que não fiquem a mercê de subterfúgios da suposta “liberdade econômica” e da “desburocratização”, que concorrem para desmontar o aparato legislativo em vigor e permitem colocar a cidade à disposição de interesses exógenos aos dos seus habitantes;
1.7. Extinguir a prática arrecadatória e eleitoral de editar leis que regularizem construções que descumprem a legislação urbanística e de patrimônio;
1.8. Implantar meios de informação permanente, que esclareçam a respeito dos riscos e efeitos dos desastres ambientais no cotidiano das cidades e na vida de sua população, além de alertar sobre os danos causados, direta ou indiretamente, pelo descumprimento de leis ambientais e de uso e ocupação do solo;
1.9. Incentivar propostas de adaptação que promovam mecanismos de resiliência aos desafios climáticos, mediante o resguardo da qualidade ambiental e social, a defesa do direito pleno à cidade e o combate aos processos de exclusão e segregação espacial.
- Para atuar no planejamento do território
2.1. Considerar e/ou elaborar instrumentos que garantam a manutenção e a valorização das paisagens naturais, a preservação do ambiente e o controle e regulação do impacto gerado por atividades produtivas e/ou extrativistas (mineradoras, desmatamento, queimadas, etc);
2.2. Elaborar instrumentos que respeitem a gestão integrada e democrática do território nos casos relativos aos sistemas de cidades e aglomerados urbanos, considerando a divisão e ocupação do espaço territorial segundo características culturais, geográficas, geológicas e/ou produtivas;
2.3. Estabelecer limites de expansão das áreas urbanizadas, respeitando a integridade do território, seus recursos naturais e suas extensões rurais;
2.4. Condicionar propostas de expansão de perímetros urbanos a estudos técnicos especializados, que demonstrem a necessidade e eficácia das mesmas, indicando critérios de respeito à integralidade do território e seus recursos naturais, e de promoção social dos habitantes;
2.5. Definir instrumentos de controle e participação social no financiamento e redistribuição de recursos de concessões de Parcerias Públicas e Privadas na gestão do território;
2.6. Garantir o direito à cidade e ao desenvolvimento urbano, preservando e valorizando processos culturais e produtivos das comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhas);
2.7. Reinserir, na gestão do território e do patrimônio público, uma fiscalização técnica planejada, regular e eficaz, executada pelos órgãos internos da administração municipal em coordenação com os organismos participativos da sociedade civil.
2.8. Fiscalizar, com rigor, o acatamento das leis de uso e ocupação do solo e das taxas de solo natural, exigidas em edificações com habite-se expedido;
2.9. Desestimular projetos de edifícios e conjuntos de uso residencial exclusivo e de condomínios fechados;
2.10. Exigir, em cidades consolidadas, soluções de integração entre os domínios público e privado em projetos urbanísticos e de arquitetura, desestimulando e penalizando a descontinuidade entre eles mediante a construção de muros, fixação de grades e outros elementos em nome da garantia de segurança no espaço público.
- Para atuar em áreas vulneráveis
3.1. Estabelecer processos de regularização fundiária, democratizar o acesso à terra e garantir o direito equânime à cidade;
3.2. Realizar periodicamente cadastramento e mapeamento, com a finalidade de avaliar e realocar assentamentos situados em áreas de risco;
3.3. Estimular a implementação da Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS), programa integrante da Política Pública de Habitação, e comprometer as administrações locais em estruturar propostas e destinar investimentos condizentes com o objetivo social do programa;
3.4. Incentivar a construção de novas edificações que considerem usos mistos residencial, comercial e serviços na configuração dos espaços comunitários;
3.5. Implantar equipamentos urbanos destinados a estimular uma efetiva inclusão social, dirigidos à promoção da educação, da cultura, da saúde, do lazer, dos esportes e da segurança;
3.6. Promover a criação de canteiros modelos e outras oportunidades de participação e emprego, destinados a formar mão de obra local e garantir fontes de renda.
- Para atuar em programas públicos de habitação social
4.1. Privilegiar soluções habitacionais inseridas na malha urbana consolidada, com empreendimentos de pequeno porte em áreas de usos diversificados;
4.2. Evitar e superar o velho conceito de grandes conjuntos habitacionais de uso residencial exclusivo, que além de se tornarem ilhas de segregação social, muitas vezes favorecem práticas de chantagem e extorsão contra seus moradores e a conformação de redutos da criminalidade;
4.3. Contribuir para qualificar os projetos em curso, tipo Minha Casa Minha Vida, que possuem a intenção de diminuir déficits, mas que desestimulam elementos inovadores, alternativos e sustentáveis, além de não incorporarem costumes e comportamentos socioculturais de seus futuros moradores;
4.4. Articular os novos empreendimentos à malha urbana consolidada e privilegiar o uso dos espaços públicos, promovendo a dignificação, a integração comunitária e a segurança;
4.5. Promover usos mistos e variados, que garantem a sustentabilidade dos moradores e dinamizam o uso e apropriação dos espaços sociais;
4.6. Prever e construir equipamentos dirigidos à educação e cultura, à saúde, ao lazer e reunião, aos esportes e à segurança, com objetivo de promover a integração social, o desenvolvimento humano e a apropriação dos espaços comunitários.
4.7. Destinar áreas verdes, permeáveis e coletivas compatíveis com as diretrizes de loteamentos.
- Para atuar nas áreas e edificações subutilizadas e/ou deterioradas
5.1. Respeitar o direito de propriedade estabelecido no artigo 5º da Constituição Federal, bem como a função social da propriedade urbana, conforme o caput do artigo 182, no capítulo referente à Política Urbana;
5.2. Estimular projetos de reforma arquitetônica destinados a edificações desocupadas e/ou subutilizadas para habitação e seus usos complementares;
5.3. Reabilitar áreas urbanas subutilizadas, estimulando atividades continuadas situadas próximos aos locais de trabalho, diminuindo tempo e custo de transporte, melhorando a segurança pública e otimizando a infraestrutura pré-existente;
5.4. Integrar as gestões municipais às políticas e programas desenvolvidas por órgãos federais e estaduais de preservação do patrimônio, com a finalidade de garantir o respeito aos sítios tombados, fortalecer a fiscalização, o cuidado e a valorização da paisagem urbana nos centros das cidades;
5.5. Realizar levantamentos da situação física e dos débitos com o Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) em imóveis desocupados e subutilizados, localizados em áreas urbanas;
5.6. Introduzir e fortalecer a preservação do patrimônio cultural edificado, da paisagem e da respectiva infraestrutura nos conteúdos conceituais dos Planos Diretores;
5.7. Assumir a reabilitação de centros urbanos subutilizados ou em decadência como política de Estado, fortalecendo as instituições pertinentes para este fim;
5.8. Destinar edifícios públicos desocupados e/ou subutilizados para moradia de aluguel social ou programas sociais de acolhimento de pessoas em situação de carência extrema (moradores em situação de rua).
- Para atuar em mobilidade urbana
6.1. Considerar estratégias de atuação baseadas na hierarquia dos modais de mobilidade: Pedestres (caminhabilidade); Não motorizada (ciclistas e outros); Transporte público; Transporte de cargas; Motorizada individual (automóvel, motocicleta, bicicleta elétrica);
6.2. Promover a qualificação urbana a partir da mobilidade de pedestres e não motorizada, considerando a estruturação do espaço urbano, o estímulo a fachadas ativas, o uso misto e variedade de ocupação do solo, a integração social e a garantia da segurança pública;
6.3. Viabilizar programas de racionalização e otimização operativa das cidades, tendentes a diminuir os tempos de deslocamento e a aproximação e integração entre moradias e locais de trabalho, serviços e lazer;
6.4. Assegurar instrumentos de otimização e qualificação do transporte público em seus diversos modais, desestimulando o atual predomínio do automóvel;
6.5. Considerar programas de integração e articulação regional e metropolitana na definição dos sistemas de transporte público e de cargas;
6.6. Viabilizar estudos para a implementação de uma nova matriz de transportes, não poluente, de perfil intra-urbano, interurbana, metropolitana e regional;
6.7. Impulsionar e priorizar o setor ferroviário, o de cabotagem e o fluvial, no que se refere ao transporte de carga (inter-regional) e, o sobre trilhos para deslocamentos intra-urbanos e interurbanos;
6.8. Elaborar estudos realistas e condizentes para o financiamento do transporte público e para a cobrança de tarifas;
6.9. Estimular políticas de apropriação dos espaços públicos, hoje ocupados por automóveis e motos, instalando bicicletários e outras iniciativas destinadas a contribuir para a mobilidade não motorizada;
6.10. Incentivar a caminhabilidade mediante a melhoria e manutenção das calçadas e o uso intensivo dos espaços públicos com a ampliação de áreas verdes e arborizadas;
6.11. Integrar, nas leis de uso e ocupação do solo, as redes de transporte público em concordância com a densificação urbana;
6.12. Limitar a quantidade de vagas de estacionamento nos empreendimentos privados;
6.13. Incentivar a transformação de áreas de estacionamento, existentes nos pavimentos térreos de construções privadas, em usos mistos e fachadas ativas.
- Para atuar no patrimônio construído, urbanístico e paisagístico
7.1. Fortalecer a fiscalização e valorização da paisagem urbana como fonte de convívio e equilíbrio climático, complementadas com programas obrigatórios de arborização;
7.2. Providenciar a implementação da Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS) em residências de moradores com baixos recursos, nos centros históricos tombados;
7.3. Garantir a vitalidade e sustentabilidade do patrimônio edificado, viabilizando a recuperação, funcionamento e desenvolvimento de atividades culturais, comerciais e de serviços;
7.4. Consolidar o Sistema Nacional do Patrimônio, articulando atuações integradas em escala regional e nacional;
7.5. Incentivar “Canteiros Modelo,” destinados a capacitar recursos humanos locais e criar equipes de prestação de serviços, destinados a preservar o patrimônio edificado e paisagístico;
7.6. Integrar os instrumentos de Preservação do Patrimônio Edificado e Paisagístico nos Planos Diretores Municipais, considerando paisagens e edificações como ativos financeiros sustentáveis;
7.7. Estimular a preservação e sustentabilidade do patrimônio modesto, constituído por propriedades individuais de pessoas de fragilidade econômica, situadas em contextos urbanos, culturais e ambientais de valor;
7.8. Favorecer condições de acessibilidade no espaço urbano e edifícios nos centros históricos de cidades pequenas, assim como instalação de novas tecnologias;
7.9. Promover, nas comunidades locais, dinâmicas culturais e incentivos ao conhecimento e valorização do patrimônio mediante iniciativas de educação pública e integração de museu e escola;
7.10. Garantir rotinas de manutenção e monitoramento como estratégias de conservação preventiva do patrimônio, integradas aos organismos especializados.
- Para atuar na infraestrutura e serviços públicos
8.1. Implantar infraestrutura urbana que possibilite o acesso universal ao saneamento básico e à água potável, contribuindo para a proteção dos mananciais, aquíferos e demais ecossistemas;
8.2. Criar aterros sanitários em substituição de lixões, de modo que resguardem a saúde e a qualidade de vida urbana, estabelecendo metas para esse objetivo;
8.3. Regularizar ocupações ou relocar famílias em áreas de mananciais e beiras de rio sujeitas ao risco de contaminação de recursos naturais, garantindo soluções dignas de moradia e a participação dos moradores nas decisões;
8.4. Defender políticas públicas para a gestão e preservação dos recursos naturais;
8.5. Impulsionar campanhas de coleta seletiva e despejo apropriado do lixo;
8.6. Preservar a qualidade da água e impedir a contaminação de lençóis freáticos por meio de despejos inapropriados;
8.7. Estimular processos construtivos alternativos e inovadores, que evitem a proliferação de resíduos sólidos;
8.8. Otimizar o tratamento de esgotos sanitários e de resíduos sólidos, visando a preservação da saúde e do ambiente;
8.9. Desenvolver projetos e promover financiamento para infraestrutura de drenagem urbana sustentável (jardins de chuva, pisos permeáveis, arborização e recuperação de encostas e leitos de rios).
Fortaleza-CE, 03 de setembro de 2024
Direção Nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB
Comissão de Políticas Urbanas e Habitação Social do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB