Arquitetura e civilidade

Roberto Ghione



Foto: Diego Nigro / JCImagem

“Não existe democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, e muito menos justiça com desigualdade”. O enunciado do Papa Francisco revela os problemas e desafios dos países emergentes, entre eles o Brasil. Desde nosso campo de conhecimento e atuação, podemos complementar que não existe civilidade sem urbanismo, pois é nas cidades onde se refletem com maior dureza os conflitos sociais.

Promover civilidade nas atuações em arquitetura representa o compromisso da profissão com um desenvolvimento social e cultural genuíno. Caso contrário, a conformidade dependente dos interesses de mercado perdura a barbárie marcada pela desigualdade, a exclusão, a segregação e a negação do urbanismo.

Esse desafio, que caracteriza a realidade contemporânea no Brasil, atinge a maior parte da construção civil. A ausência de civilidade se verifica na precariedade de favelas e assentamentos periféricos, assim como na arquitetura majoritariamente excludente da cidade formal, negacionista do urbanismo. Merece ser motivo de preocupação, especialmente para os formados em universidades públicas, custeadas pelo Estado, que deveria ser retribuído com conhecimento e atuação profissional comprometida com a consciência cidadã e com o processo civilizatório do país.

A ausência de urbanismo na maioria das grandes cidades brasileiras revela uma perda de rumo. Ele faz parte da essência da própria arquitetura enquanto construção do hábitat humano, aspecto que parece adormecido na consciência profissional.

Arquitetura faz a cidade, assim como a cidade se qualifica através dela. Ignorar esse relacionamento intrínseco degrada a profissão, que atua conivente com um processo contrário à civilidade, submisso ao mercado e amparado por planos diretores de desenvolvimento e leis de edificação.

O atual contexto político local e internacional tem ressuscitado, na última década, o debate entre civilização e barbárie. Grupos radicais discriminam e atacam povos originários, diferenças raciais, imigrantes e pessoas em situação de fragilidade social, econômica e ambiental, impulsionando redes sociais, informações falsas, cooptação da fé e notícias tendenciosas. No Brasil, essas pautas, que incluem aporofobia, negacionismo, oportunismo e corrupção, perduram uma consciência escravagista, que se manifesta na ocupação do território, na configuração das cidades e nas práticas de arquitetura e urbanismo.

O planejamento urbano em escala macro revela estatisticamente as desigualdades na ocupação do território para definir políticas públicas. Mas é na arquitetura, na solução dos encontros entre os domínios público e privado, com inteligência e sensibilidade, que encontramos uma das chaves para a solução de bons projetos, promotores de um processo civilizatório desde a prática profissional

A negação da ciência, cujo reflexo é a negação do urbanismo na concepção da arquitetura, representa a parte da barbárie que afeta a profissão, enraizada historicamente na consciência social. Superar esse atraso conceitual é desafio digno da nossa autoproclamada condição de “arquitetos e urbanistas”, segundo passamos a nos apresentar desde a criação do conselho profissional.

_

Roberto Ghione, Arquiteto, Especializado em Crítica Arquitetônica, Preservação do Patrimônio e Planejamento Urbano. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados. Presidente do IAB PE 2017/19. Vice-presidente do IAB Região Nordeste. Coordenador da Comissão de Política Urbana e Habitação Social do IAB