por Raquel Freire
“Uma mulher negra levaria, em média, 184 anos para comprar sua casa própria no Brasil.”
Fonte: ONG Habitat Para a Humanidade. Estudo “Sem moradia digna, não há justiça de gênero”. 2025
No Brasil urbano, a casa própria ainda é um horizonte distante para milhões de pessoas. Mas quando os recortes de raça e gênero se impõem sobre essa realidade, a distância torna-se abismo. Um estudo recente da ONG “Habitat Para a Humanidade” revela um dado estarrecedor: uma mulher negra levaria, em média, 184 anos para comprar sua casa própria no Brasil. Esse número, mais que estatística, é o diagnóstico de um sistema que nega o direito à moradia digna e revela as camadas mais profundas da desigualdade racial e de gênero no país.
Neste 25 de julho, Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, convidamos o campo da arquitetura e urbanismo a refletir sobre quem habita, quem projeta e quem decide os rumos da cidade. Porque mulheres negras constroem — e constroem muito mais do que se vê.
No direito à habitação, em unidades sob vulnerabilidade habitacional, a maior parte dos chefes de família no Brasil são mulheres negras (DIEESE, 2023). Como parte de uma realidade social no país, as mulheres negras são as principais usuárias dos espaços públicos, dos transportes coletivos, dos bairros periféricos. Vivem, de forma intensa e cotidiana, os impactos das políticas urbanas — ou da ausência delas. Estão na linha de frente das vulnerabilidades urbanas, convivem em peso com a insegurança, falta de infraestrutura básica, ausência de espaços de lazer, distância dos equipamentos públicos e do acesso pleno à cidade.
No entanto, essa vivência concreta e contínua não se subverte em presença proporcional nos espaços de decisão sobre o território. Os dados mais recentes do Censo do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (2020) mostram que menos de 25% dos arquitetos registrados no país são pessoas negras, sendo as mulheres negras a menor fração desse grupo. Além disso, recebem os salários mais baixos, enfrentando múltiplas barreiras para acessar lideranças, além de serem constantemente expostas à discriminação, o assédio e o questionamento constante de sua legitimidade profissional.
Porém, quando mulheres negras acessam a arquitetura, elas transformam.
A presença dessas profissionais simboliza e reverbera como uma ruptura necessária dos paradigmas hegemônicos, coloniais e excludentes. Com o ingresso de cada vez mais profissionais negras na graduação, o repertório avança para uma arquitetura com referenciais que não contemplam somente uma realidade e uma prática profissional homogeneizadora, mas sim que passa a visualizar outras dinâmicas do território e da arquitetura.
São olhares atentos ao cotidiano, como o de mulheres negras, que se somam a vozes que denunciam e enfatizam o debate de temas-chave para a superação de injustiças sociais na cidade, como a segregação espacial, gentrificação, justiça climática, políticas de habitação, entre outros – além de resultarem em atuações que defendem mais alternativas baseadas em planejamento participativo, projetos de requalificação e transformação do espaço a partir de um viés de justiça social.
Para isso, o movimento de arquitetas negras se organiza e se reúne para transformar a arquitetura a partir de uma ação transformadora e, essencialmente, coletiva.
Diante de tantas barreiras, esses espaços de coletividade são estratégias fundamentais de permanência e fortalecimento. Cada vez mais mulheres negras na arquitetura se reúnem para trocar experiências, formar redes de apoio e construir práticas profissionais alinhadas com seus valores e vivências. A coletividade, nesse contexto, é ferramenta política, e portanto, um projeto de futuro.
Com isso, aos poucos, esses passos que vêm de longe (como diz Jurema Werneck) alimentam um espaço não apenas para a sobrevivência — é também um espaço de criação. São esses passos que sustentam a luta contra o racismo institucional, contra a elitização da profissão e contra a ausência de políticas efetivas de inclusão no mercado de trabalho e nas entidades de representação.
No fim do dia, todo e qualquer conhecimento é construído a partir de um espaço, de um tempo e com um objetivo. Logo, a partir de onde, quando e como falamos, a arquitetura também é um instrumento de justiça, seja ela social, racial ou de gênero.
Para nós, que vivenciamos as entidades de arquitetura e urbanismo, é essencial reconhecermos que não há prática ética sem o compromisso com a equidade. É responsabilidade histórica e política de todos nós, profissionais que refletem no espaço a sociedade que queremos, enfatizar e incentivar ações exemplares.
São diretrizes como: fortalecer políticas de acesso e permanência, tanto na formação técnica e superior; promover programas de mentoria, redes de apoio e valorização de profissionais negras; combater o racismo institucional nas escolas de arquitetura, nas autarquias e no mercado de trabalho; garantir a presença de arquitetas negras que prezam pela justiça social nos espaços de decisão, regulamentação e cultura da profissão, entre tantas outras ações que podem nos guiar a uma profissão mais acessível e digna.
No fim, a pergunta é simples e urgente: quem tem o direito de habitar a cidade?
E nossa resposta é: todas as pessoas, mas de forma justa e digna.
Pois, quando mulheres negras guiam o traço do futuro, vemos que este só será viável se for feito com justiça.
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Raquel Freire é arquiteta e urbanista, e atualmente ocupa o cargo de Vice-Presidente de Ações Afirmativas na Direção Nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB).
Minibio:
Arquiteta e urbanista, formada pela Universidade de Brasília (UnB), atualmente mestranda em urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pós-graduanda de Especialização em Geoprocessamento pela PUC Minas. Atuou na área de assessoria e assistência técnica em políticas habitacionais, passando pela CODHAB (DF) e SEDUH (DF). Foi coordenadora do Coletivo de Arquitetos Negros Calunga (FAU/UnB), pesquisadora sobre gênero e raça na Coletiva Arquitetas inVisíveis e co-fundadora do Escritório Izô Arquitetura. Conselheira e coordenadora da Comissão de Equidade de Gênero e Raça no departamento do Distrito Federal do IAB (IAB-DF) e atua como assistente técnica no Instituto Afrolatinas, com projetos de equidade de gênero e raça.