Carmen Portinho como patrona do Urbanismo no Brasil

Engenheira foi exemplo de resistência feminina e inovadora no campo do urbanismo


Por Sabrina Ortácio
O Plenário do Senado aprovou em votação simbólica no dia 10 de agosto de 2022 um projeto que segue para análise da Câmara dos Deputados. que intitula “A engenheira Carmen Velasco Portinho como patrona do urbanismo no Brasil”. O PL 1.679/2022 é do senador Carlos Portinho (PL-RJ), sobrinho-neto de Carmen, e foi relatado por Eliziane Gama (Cidadania-MA). O projeto ganhou apoio do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), do departamento do Rio de Janeiro (IAB/RJ), da Sociedade dos Engenheiros e Arquitetos do Rio de Janeiro (SEAERJ), do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU BR) e do CAU/RJ, que divulgaram cartas de adesão à inscrição.

Lúcio Costa e Carmen Portinho – Fonte: Acervo do NPD/ FAU/UFRJ.

Segundo a justificativa do projeto, além de marcar a história do urbanismo brasileiro, a engenheira dedicou-se, por muitos anos, à defesa do direito das mulheres ao voto, à proteção das mães e da infância, à educação das mulheres e à valorização do trabalho feminino fora da esfera doméstica. Ela também foi a primeira presidente da Associação Brasileira de Engenheiras e Arquitetas (Abea), fundada para incentivar mulheres formandas a ingressar no mercado de trabalho. Em 1935, Portinho ainda participa da fundação da SEAERJ, sendo a primeira presidente mulher entre 1947 e 1949.

“Pioneira em sua formação acadêmica, engenheira, crítica de arte e primeira mulher a receber o título de urbanista, sua atuação profissional nos deixa o legado de obras como o Conjunto Pedregulho e o MAM, em parceria com o arquiteto Affonso Eduardo Reidy, além do conceito de habitação popular articulada com o acesso aos serviços sociais como política pública. Defendendo a ideia de que a emancipação econômica da mulher é à base de sua emancipação social e política, Carmen protagonizou ações e conquistas liberalizantes e inovadoras que continuam a nos inspirar na defesa de um país inclusivo, generoso e equitativo.”, afirma o documento publicado pelo IAB.

Fonte: Acervo do NPD/ FAU/UFRJ.

Para Marcela Abla, vice-presidente Região Sudeste do IAB, Carmen Portinho foi uma das mulheres protagonistas da habitação e do urbanismo das nossas cidades, colocando em primeiro plano as pessoas ao introduzir um novo conceito de vida valorizando as necessidades cotidianas e a garantia do direito à habitação adequada e de qualidade. Em 2017, Marcela apresentou a tese de doutorado em urbanismo “Gênero e produção de habitação social: uma perspectiva para o planejamento urbano a partir do pensamento de Elizabeth Denby, Carmen Portinho, Margarete SchütteLihotzky e Catherine Bauer”, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro. O estudo destaca que Carmen Portinho assumiu uma posição pioneira no planejamento urbano da cidade, ao divulgar o ideal moderno em revistas e jornais e executar suas ideias em obra habitacional materializada nos conjuntos realizados pelo Departamento de Habitação Popular, defendendo habitação popular como serviço público.

Piscina do Conjunto Residencial Pedregulho – Fonte: Acervo do NPD/ FAU/UFRJ.

A tese também revela que apesar da influência de Le Corbusier, este não foi sua única referência de conhecimento. Carmen Portinho era estudiosa de planos urbanísticos e textos teóricos, acompanhava as publicações da revista City Planning, do Instituto Americano de Planejamento Urbano, e da francesa Librarie de la Construction Moderne entre outras fontes como o livro Modern Housing de Catherine Bauer. Carmen Portinho discutia o urbanismo com colegas especialistas, publicando artigos que buscavam legitimar o modo de intervir nas questões-problema da cidade, que se transformava em metrópole. “O urbanista deve ser o coordenador de esforços, o artista que, em ramo harmonioso, enfeixe numa policromia atraente e exquisita todos os fatores e beleza urbana.”, diz citação de Carmen Portinho, divulgada na tese.

SOBRE CARMEN PORTINHO

Carmen Portinho nasceu em Corumbá (MS), em 26 de janeiro de 1903, e formou-se em engenharia civil em 1925, na Escola Politécnica da antiga Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1939, tornou-se a primeira mulher a obter o título de urbanista no país. Após formar-se engenheira, Carmen ingressou no quadro técnico da Diretoria de Obras e Viação da prefeitura do Distrito Federal do Brasil. “Por ser mulher, foi desacreditada e impelida a vistoriar um para-raios, instalado no alto de um edifício, no Rio de Janeiro”, diz Carlos Portinho na justificativa do projeto.

Em 1945, Carmen recebeu uma bolsa do Conselho Britânico para estagiar nas comissões de reurbanização das cidades inglesas destruídas pela guerra. Após voltar ao Brasil, sugeriu ao então prefeito do Rio de Janeiro a criação de um departamento de habitação popular para sanar a falta de moradias populares no município.

Assim, em 1946, foi criado o Departamento de Habitação Popular da Secretaria de Viação e Obras Públicas da Prefeitura do Distrito Federal, órgão do qual Carmen foi nomeada diretora.

Um exemplo de seu trabalho, enquanto diretora do departamento, foi a construção do Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, conhecido como Pedregulho, no bairro de São Cristóvão, cujo projeto arquitetônico ficou sob responsabilidade de seu companheiro, Afonso Eduardo Reidy, diretor do Departamento de Urbanismo. Erguido em 1951, o edifício foi elogiado pelos renomados arquitetos Max Bill, em 1953, e Le Corbusier, durante sua passagem pelo Brasil, em 1962. Estava se criando uma política de habitação inclusiva e acessível para os cariocas que servirá de modelo de “moradia digna” dentro e fora do país.

FEMINISMO

A urbanista foi pioneira na luta feminista, fundando em 1922 a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. A iniciativa buscava igualdade entre os sexos e a independência da mulher. Junto com Berta Lutz, dedicou a vida em defesa de importantes temas como o direito das mulheres ao voto, a proteção às mães e à infância, a educação das mulheres e a valorização do trabalho feminino fora da esfera doméstica.

Recorte do jornal O Globo

Poucas mulheres arquitetas, engenheiras ou urbanistas no mundo tiveram um papel tão relevante nas políticas públicas de habitação e moradia como Carmen Portinho. Marcela cita apenas Elizabeth Denby, Margarete SchutteLihotzky e Catherine Bauer. Mas podemos afirmar com veemência, pela escala do desafio que enfrentou, que o trabalho de Carmen Portinho destaca nesse universo e ainda hoje se nos faz presente na cidade do Rio de Janeiro, e no Brasil como um todo, inspirando as políticas para além da resolução dos problemas meramente funcionais e colocando na pauta os assuntos de gênero, de justiça, de apoio às minorias e à diversidade e de repensamento de fenômenos urbanos como as favelas os assentamentos informais. Mesmo dezenas de anos depois, temos muito a reconhecer sobre a trajetória dessa pioneira do urbanismo de gênero, socialmente comprometido com o movimento moderno, como uma forma de encarar os grandes desafios que o futuro nos traz, na urbanização sustentável de nossas cidades, na integração da favela e dos assentamentos informais no território e na paisagem, e, sobretudo, na defesa do papel da mulher na resolução desse grande desafio.

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Fontes: Com informações recortadas de textos de autoria da arquiteta e urbanista Marcela Abla, além da Tese “Gênero e produção de habitação social: uma perspectiva para o planejamento urbano a partir do pensamento de Elizabeth Denby, Carmen Portinho, Margarete SchütteLihotzky e Catherine Bauer”, da mesma autora.

Leia aqui: Tese Marcela Abla
Leia na íntegra a carta de apoio do IAB: CLIQUE AQUI