A presidente do IAB, Maria Elisa Baptista participou na quarta-feira (06/10) da audiência pública da Comissão de Desenvolvimento Urbano que tratou do tema “Arquitetura Hostíl”. Ela esteve ao lado do autor do projeto Senador Fabiano Contarato, do relator deputado Joseildo Ramos, e dos colegas arquitetos Eleonora Mascia e Ednezer Flores, e, em especial, do Padre Julio Lancellotti, a quem Maria Elisa admira profundamente. Confira abaixo a fala completa da presidente do IAB:
Audiência pública: Arquitetura hostil 2021 10 06
Há dois dias celebramos o dia mundial da arquitetura e o dia mundial do habitat. É um feliz arranjo que datas coincidam, pois não há uma sem o outro.
Começo minha fala por outro projeto, a PEC 19/2014, de autoria do senador Paulo Paim, aprovada na semana passada pelo Senado, que inclui os direitos à acessibilidade e à mobilidade entre os direitos fundamentais arrolados no artigo 5º da Constituição Brasileira. É um projeto, como este que discutimos aqui, que tem como objetivo cidades inclusivas e democráticas.
Na Constituição, no capítulo 6º, entre os direitos sociais, ao lado do direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer e à segurança, está o direito à moradia. No capítulo anterior, no inciso XI, a carta magna já afirmava que a casa é asilo inviolável do indivíduo.
No entanto, há uma imensa e absurda distância entre o que escrevemos tão bem nas nossas leis e a realidade de nossas cidades e nossos campos.
8% da população brasileira sobrevive em espaços sem mínimas condições de habitabilidade. Eram, em 2019, ultimo ano do qual temos os dados, 5 876 699 famílias em habitações precárias, dividindo cômodos ou pagando ônus excessivo de aluguel. O que aqui se chama de habitação precária são domicílios improvisados, prédios em construção, viadutos, vagões de trem, carroças, tendas, barracas, grutas. Além delas, há outras 24 893 961 famílias em moradias inadequadas, muitas vezes sem banheiro, sem acesso à água tratada, à coleta de esgoto, lugares insalubres, como as moradias que levaram a favela da Rocinha a ser a maior concentração de casos de tuberculose no Brasil. Correspondem a 39,84% da população brasileira.
Os dados são de 2019, já vinham crescendo desde 2016 e são hoje mais graves, passados 19 meses de uma pandemia mais cruel ainda por mostrar seus piores índices nas periferias e entre os mais pobres. Um país que tem quase a metade de sua população desprovida de um lugar digno para morar é um país completamente disfuncional.
Tanta casa sem gente e tanta gente sem casa. Fôssemos um país pobre, miserável, sem recursos, mas não. Há riqueza e esbanjamento à nossa volta. A construção civil não diminuiu seu ritmo nesses tempos terríveis da Covid, ao contrário, a pressão por despejos e o ritmo acelerado das obras de luxo, completamente desnecessárias, segue a todo vapor.
A brutalidade de não ter onde morar dignamente tem consequências graves na educação, na saúde, na segurança, na cultura, em todos os direitos que a Constituição anuncia, mas a nação não cumpre.
O aumento da pobreza nos últimos anos é visível nas nossas cidades. Qualquer marquise, todo viaduto, qualquer cobertura improvisada fornece o alívio transitório e inseguro do teto que devia ser direito garantido a todas as pessoas.
Guimarães Rosa, em entrevista de 1965, dizia que “a lógica, prezado amigo, é a força com a qual o homem, algum dia, há de se matar. Apenas superando a lógica é que se pode pensar em justiça”. A lógica que precisamos superar é a da propriedade privada e da transformação de todas as coisas e todos os lugares em valor de troca.
É preciso recusar a hipocrisia de preservar a suposta integridade de ruas e espaços públicos enquanto muitos de nós não têm onde se abrigar. É preciso garantir espaços urbanos acolhedores, lado a lado com a luta por moradia digna e pelo direito ao trabalho, à saúde, à educação, à cultura. São muitas frentes, e esse PL contribui para enfrentarmos uma delas.
Por esses motivos, o IAB apoia o projeto de lei 488, tão justamente chamado de lei Padre Julio Lancellotti que veda o emprego de técnicas construtivas hostis. Não repetirei aqui a justificativa do projeto de lei, toda ela pertinente e incisiva. Trata-se, sabemos, de garantir o direito à cidade, o direito à vida, o tratamento justo, igualitário e democrático de todos os cidadãos e cidadãs. Trata-se de reconhecer o espaço público como o lugar de todos, e incluir esta postura como diretriz da formulação da política urbana no Estatuto das Cidades.
O PL representa a luta para barrar a utilização de artifícios construtivos que aprofundam ainda mais as iniquidades que excluem grande parte da população brasileira do direito à cidade.
No entanto, trazemos o pedido compartilhado com o CAU e a FNA: que o nome que designa essa crueldade urbana não seja arquitetura hostil.
Em 1993, quando era presidente do IAB em Minas Gerais, instituímos o Prêmio Gentileza Urbana. O prêmio identificava e dava visibilidade às iniciativas que faziam a cidade melhor para todas as pessoas, abrangendo uma miríade de ideias, obras e propostas realizadas por uma cidade mais humana, lúdica, generosa, democrática.
O que o PL 488 acertadamente quer impedir não é arquitetura. Equipar espaços para que não sejam usados, armá-los como para a guerra, expulsando as pessoas que ali podem encontrar abrigo e descanso, não é arquitetura, é violência. São decisões políticas e econômicas autoritárias e excludentes.
A arquitetura trata da vida, do corpo e da alma, e de nosso lugar no mundo. É preciso restaurar no imaginário de todos nós essa capacidade da arquitetura de projetar e executar espaços acolhedores, generosos, democráticos, que nos mostrem a beleza, nos humanizem, para que ela de fato, feita por muitas mãos, pensada por muitas cabeças, reinvente nosso lugar na cidade. Um lugar de todos.
Vejam: não há, em todo o Estatuto, a palavra arquitetura. Ela está, todo o tempo, subentendida nos textos sobre a regulamentação da função social da propriedade, ao falar dos equipamentos urbanos, da moradia, do uso do solo, do patrimônio. O Estatuto trata das questões que a arquitetura trata, mas a palavra arquitetura não está escrita.
Não podemos inscrevê-la para designar aquilo que ela não é.
Giulio Carlo Argan, o historiador que foi prefeito de Roma, dizia que planejamos e projetamos porque acreditamos que o mundo pode ser melhor do que é. É isso que a arquitetura busca: construir, cuidar e inventar lugares e cidades para os velhos, as crianças, as mulheres, os pobres, os menos aptos, para todas e todos.
Reafirmamos nosso apoio ao PL, e ficamos à disposição do relator para pensarmos juntos o termo mais adequado para designar esse absurdo que queremos combater, os elementos e as técnicas construtivas agressivas, hostis e excludentes.
Obrigada.