O Dia da Arquiteta e Urbanista é um marco sobre a realidade brasileira. Profissionais conscientes de seu papel político e social, as arquitetas representam atualmente a maior parte dos arquitetos registros no Brasil.
Celebramos esta data com o discurso inspirador “Mulheres e política profissional”, de Maria Elisa Baptista, arquiteta e 1ª mulher presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil, hoje Conselheira Vitalícia no Departamento de Minas Gerais.
O discurso, proferido no dia 02 de maio de 2023, em evento realizado no Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará (CAU-CE), nos relembra da presença e da história que arquitetas urbanistas constroem para a nossa realidade.
“Mulheres e política profissional” , por Maria Elisa Baptista.
Agradeço o convite feito pelo presidente Lucas, para estar aqui nesse diálogo com as queridas Cristiane e Marcela Abla, e saúdo todas e todos, nessa linda cidade de Fortaleza.
Conversar sobre como é ser uma mulher na política profissional talvez seja um jeito de descrever o percurso que tantas de nós trilhamos para estar aqui, cada uma a seu modo, cada uma a seu tempo.
De certo modo, podemos nos espelhar em Italo Calvino, quando diz “que a obra verdadeira consiste não em sua forma definitiva, mas na série de aproximações para atingi-la”. Um caminho que faz o que existe ser como é, uma busca inesgotável pela precisão, e, principalmente, pela leveza. Uma certeza que guardo em todos esses anos, é que nenhuma de nós caminha sozinha.
Há 500 anos o homem fez, pela primeira vez, a volta à terra (1). Uma aventura recheada de perigos − mitológicos e reais – demonstrou que a terra era redonda e, como saberíamos um século depois, girava em torno do sol. Há menos de setenta anos, em 1957, as imagens enviadas pelo primeiro satélite espacial a orbitar a Terra mostraram, pela primeira vez, as cicatrizes deixadas pela humanidade.
Alguns anos depois, em 1972, o relatório nosso futuro comum anunciou o fim do mundo. Anúncio repetido em muitas outras ocasiões, cada vez mais cercado de evidências irrespondíveis, e, pelo visto, ignorado, pois continuamos a nos encaminhar velozmente para uma catástrofe ambiental de escala planetária.
Milhões morreram nos últimos anos de um vírus até então desconhecido, e muitos mais morrem diariamente por doenças plenamente tratáveis, por falta de água potável, ou de fome. Outros muitos sofrem as violências das guerras em países espoliados até os ossos, sofrem o exílio, a perda de sua casa e de seu país.
No Brasil, vimos os últimos anos aprofundarem os abismos das desigualdades de gênero, com o aumento da violência doméstica, de feminicídios e da pobreza. Vimos o desmonte das instituições, a ruptura das redes de proteção, a precarização das relações de trabalho, a exploração extrativista e a financeirização da existência. A constante obrigação de cuidado imputado e demandado das mulheres revelou o universo de desafios cotidianos amplificados pela pandemia, pelas urgências climáticas e pelas guerras.
No Brasil, desde o final da década de 1970, quando o número de estudantes mulheres igualou-se ao número de estudantes homens nas escolas de arquitetura, a presença feminina no nosso campo profissional tem crescido rapidamente. Hoje somos 64% dos profissionais, e seremos, nos próximos anos, mais de 75%, pois essa é a proporção entre os jovens recém formados. Esses dados não acompanham iguais condições de trabalho, e revelam a desigualdade salarial e de acesso não só por gênero, mas também por raça e posição social.
Ao mesmo tempo, nossa profissão no Brasil tem se desvalorizado, por uma inserção cada vez mais subordinada nas relações capitalistas internacionais. O breve tempo de respiro que tivemos após a redemocratização do país nos anos 90, assim como a esperança que cultivamos nos anos 2000 foram solapadas pela regressão política sofrida após o golpe de 2016, que usurpou a presidência da primeira mulher eleita no Brasil, e empreendeu uma destruição sistemática das instituições que cuidam da cultura, da educação, da saúde, da pesquisa, da tecnologia.
A alegria que construímos e experimentamos desde 1º de janeiro não pode se ancorar no esquecimento desse passado tão recente, um passado tão presente na história do Brasil.
É nesse contexto que precisamos abrir espaço para esperanças, assim, no plural, porque nascem nas frestas do cotidiano, e pavimentam nossa atuação na política de nossas instituições.
A arquiteta argentina radicada na Espanha, Zaída Muxi, sugere atualizar a ideia de que vivemos no antropoceno − um conceito formulado há 20 anos de um planeta totalmente transformado pela ação humana – por um conceito ainda mais preciso e mais crítico: o andropoceno, uma vez que essa transformação global do planeta é resultado da forma hierárquica e produtivista como o macho da espécie humana age sobre a natureza. É resultado da exploração capitalista, portanto, e, para ser mais preciso, capitaloceno: patriarcado capitalista(2).
Vejam, venho de um estado lindo, de montanhas e córregos, muita água, o cerrado. A negligência, a incompetência e a ganância da Vale, privatizada no governo de FHC, deixaram um rastro de mortes, mataram um rio, corroem nossas montanhas e roubam nossa água.
O descuido e a negligência que a gente enfrenta no cotidiano são motores do modo de produção capitalista, que joga fora tudo que já não serve à obtenção de lucro imediato – lugares, coisas, gentes. Essas violências não são um mal funcionamento de um sistema, são o próprio sistema econômico, social, político, cultural. Vivemos isso no modo como o território é explorado incansavelmente, na desigualdade e na segregação urbana e rural. A prepotência, validada pela violência, submete pessoas e comunidades. Esse é o ciclo do patriarcalismo que marca nossas vidas, pessoais e profissionais, e são o foco de nossa luta feminista.
A responsabilidade primeira de qualquer ação humana é com as pessoas. Tudo o que podemos fazer − projetos, obras, publicações − tudo configura a busca de uma vida melhor. Uma visão feminina, no meu modo de entender, abarca as duas faces da razão: a face racional, que caminha entre as coisas, e a face razoável, que caminha entre as pessoas, parafraseando o filósofo espanhol Fernando Savater. Pois a única coerência que realmente importa é com a vida. E a vida não sobrevive ao descuido ou à negligência, e exige compreensão e cuidado.
Somos um povo que vive a contradição de habitar um dos lugares mais generosos do planeta e de vê-lo ser destruído, abandonando ao longo do caminho milhões de brasileiras e brasileiros.
Assim, nosso trabalho fundamental, de arquitetas arquitetos e urbanistas, é trazer de volta o sentimento de pertencer à espécie humana e a compreensão de que somos uma das milhares que compartilham o destino comum do planeta terra.
A arquitetura pode, e deve, no meu entendimento, ser uma ponte que nos religa à natureza, à essência da vida. Uma vida que só existe se for coletiva, compartilhada em sua beleza e plenitude.
Pois a cidade, esse artefato incrível, a maior invenção da humanidade, como orgulhosamente dizemos, é também a máquina devoradora de gentes e lugares. Para muitas de nós, e em muitíssimos lugares, a cidade é o espaço duro, hostil, o espaço a ser enfrentado e não desfrutado, o espaço contra, não o espaço para a vida.
Nessa escala, o desafio de nosso ofício cresce exponencialmente. O único caminho, penso bebendo em nossos gigantes, é a educação. A educação é a chave.
Precisamos educar, e nos educarmos sempre, as crianças, os jovens, os adultos, nós, velhos. E é preciso que essa educação esteja centrada nos princípios que nos orientam na luta feminista: ao descuido e à negligência, contrapor a atenção e o cuidado. À prepotência e à violência contrapor a coragem e a solidariedade. É preciso educar para a vida em comum, educar para a beleza, para a alegria. Educar para descobrirmos a simplicidade, a generosidade, a coragem. A arquitetura é instrumento irredutível de tudo isso. É preciso também educar para não repetir, criar centros de memória do que queremos esquecer, da escravidão, da ditadura, do holocausto ameríndio, dar voz ao que foi calado, ler o que foi apagado.
Se tivermos que circunscrever a amplidão de nosso campo de atuação, penso em dois princípios estruturantes: águas e infâncias. A água e as crianças são as duas coisas mais importantes. São a vida e a possibilidade de continuidade da vida, ao mesmo tempo.
Ambas, a água e a infância, exigem de nós compreensão e cuidado, um cuidado que nos reassegura o significado do ofício da arquitetura e do urbanismo. Um ofício que exige um olhar múltiplo, um olhar ao redor, um olhar para dentro, um olhar também estrangeiro para o que pensamos conhecer, um olhar para o outro, sempre.
O arquiteto Louis Khan diz que a cidade é aquele lugar onde, ao caminhar, a criança pode ver algo que lhe diga o que vai querer ser quando crescer.
Sou uma avó, e pude viver muitas vezes esse mundo da primeira infância: a minha, a dos meus filhos, a dos meus netos. Vivi como criança, como mãe e como velha. E vivi como arquiteta e urbanista. Sabemos bem os obstáculos, as dificuldades, o descaso, a inversão de prioridades. Mas sabemos também a capacidade transformadora da ação coletiva.
Ser mulher em um mundo convulsionado é uma luta cotidiana, em muitas frentes, solidária com os vulneráveis, os que não são ouvidos, os explorados de todos os lugares. É um sonho de futuro, uma ação política que quer mudar o mundo.
Se somos uma gente que quer mudar o mundo, é para termos um mundo para nossas crianças e para as que virão.
Me alegra ser a primeira mulher a presidir, em cem anos de história, o IAB. Espero que, ao lado dessa conquista de todas nós, representemos a desconstrução das manifestações patriarcais em todos os seus aspectos no âmbito da profissão, da sociedade e das instituições.
Na minha trajetória, há duas mulheres que muito me inspiraram: a poetisa polonesa Wislawa Szymborska, que fala da vida e das gentes, de pequenas coisas tão próprias do universo feminino e a arquiteta Lina Bo Bardi .
Lina Bo Bardi tem sido fonte de inspiração para gerações de arquitetos e arquitetas. Seus desenhos cheios de humanidade e alegria, sua arquitetura enraizada na cultura popular, sua profunda compreensão do lugar e das coisas. A flor de mandacaru que separa a dura passarela de concreto da dura parede de concreto de Lina é a esperança que ela nos ensina, todos os dias.
No nosso ofício, há muitas portas de entrada para a transformação da realidade. Não são fáceis, como nunca é fácil enfrentar um mundo adverso, mas são possíveis.
Primeiro, a academia, claro, que contribui com sua reflexão para o entendimento do mundo e para a invenção de estratégias, que educa os jovens e a nós mesmas.
Em seguida, o trabalho de projetar, planejar, construir lugares memoráveis, cidades democráticas, lugares em que possamos viver plenamente.
Uma terceira porta é o trabalho de manter, cuidar, registrar, demarcar, recuperar coisas e lugares para que saibamos de onde viemos e, assim, tracemos o futuro.
E, por fim, o trabalho de dar voz aos que não se sentam à mesa dos poderosos, de organizar juntos a capacidade coletiva de mudança.
Em todas essas frentes, lutamos pela quebra da hierarquia insensata, pela subversão das normas absurdas, pelo riso no lugar da sisudez, pelo ouvido antes da fala.
Essas ideias levamos para os lugares que ocupamos, na prática do nosso ofício. A desenhar e cuidar de lugares em que os acordos democráticos de vida possam se estabelecer, acordos sobre os modos, os usos, a produção, a apropriação. Há que abandonar as formas mortas e repensar um mundo para as crianças, os velhos, as mulheres, os que não são plenamente capazes. Um processo civilizatório.
Sou feminista, não porque sou mulher, mas porque é radicalmente impossível ser de outro modo, como é impossível, no meu modo de ver, não ser de esquerda. É só olhar o mundo, viver no mundo, para entender que a liberdade, a equidade e a autonomia são direitos de todas as pessoas, e que a diversidade é a maior riqueza da civilização. A luta feminista se confunde com a luta do operariado por condições de trabalho e com a luta ambientalista pelo cuidado com o mundo e com os outros.
Enfim, estar em uma posição decisória nunca foi uma dificuldade feminina, se a ela podemos imprimir nosso modo de pensar e agir. Muitas de nossas dificuldades advêm do ambiente autoritário que usualmente cerca a posição de comando.
Nossas estruturas de poder são muito pouco amigáveis para as mulheres, e muitas de nós só conseguem sobreviver abrindo mão de modos próprios, e incorporando as atitudes machistas e predatórias usuais nas empresas, na própria academia, nas agremiações. Nem todas nós, e, certamente, não todo o tempo, mostramos o melhor. Mas esse é também o caminho a trilhar.
A projetar e a construir, a consolidar o papel e a dimensão cultural, civilizatória e libertária da arquitetura.
Porque, sabemos, o mundo pode ser melhor do que é.
Obrigada.
1- levada a cabo pelo navegador português Fernão de Magalhães, que morreu na empreitada e pelo espanhol Juan Sebastián Elcano, que a completou. Contaram, sempre, com a ajuda de muitos outros, na terra e no mar, dos quais não sabemos os nomes. De quem esses homens de uma coragem e uma audácia inimaginável eram filhos, quem os esperava, se por sorte divina, um dia voltassem?
2- Montaner, Josep Maria e Muxi, Zaida. Política e Arquitetura: por um urbanismo comum e ecofeminista. P. 23