Crônica publicada na edição de 30.05.2022 do jornal O POVO, em que o autor dedica ao colega de magistério e amigo de longa data Nonato Lima.
COR NÃO É DESTINO
Por Romeu Duarte
Ao Prof. Nonato Lima
Filho de mãe branca e de pai negro, mulato sou. Por uma série de razões de foro íntimo, considero-me negro, mesmo a mestiçagem se evidenciando nos olhos claros e no nariz chato. Meus antepassados foram negros, portugueses, índios e italianos, certamente com um ou outro holandês pelo meio. Na minha casa sempre andaram pessoas de diversas etnias, todas merecendo de minha família o devido respeito. Que eu me lembre, nunca fui alvo de qualquer agressão racista, apesar de ter sido chamado a vida inteira de neguinho, negão, nêgo véi e meu nêgo, o que, para mim, é apenas uma demonstração de carinho. Nunca desenvolvi qualquer sentimento paranóico quanto a questões de raça. Mas, Paul e Stevie, ébano e marfim vivem em harmonia só no piano?
Dentre os graves problemas que atravessamos nesta triste hora nacional, quando às vezes dá vontade de desistir de tudo, o racismo estrutural é um dos mais candentes. Há muito escondido por camadas e camadas de hipocrisia e falsidade, neste momento em que os imbecis se sentem muito à vontade para manifestar seus berros e relinchos, essa forma de discriminação é praticada agora abertamente e até com orgulho. Quando associada hidrofobicamente à misoginia, à homofobia e à aversão à pobreza, obtém-se o nojento caldo cultural que nos é servido no dia-a-dia. O mais triste é ver pessoas segregadas pronunciando o discurso do opressor, que vê apenas vitimização onde há, na verdade, puro preconceito. Aliás, por onde anda o homem cordial buarqueano?
“O macho adulto branco sempre no comando, riscar os índios, nada esperar dos pretos”. Ah, estrangeiro Caetano, assim como você, sigo mais sozinho caminhando contra o vento. Inocentes adolescentes negras e negros achados por balas perdidas da polícia, favelas chacinadas a fuzil militar, trabalhadores mortos a caminho de casa por conta do matiz da tez, jovens indígenas estupradas e abatidas por garimpeiros garantidos pelo (des)governo. A lista de desmandos é imensa. Neste país, para muitos, a cor da pele é destino. Se preta, parda ou vermelha, seu lugar é no tanque de lavar roupa, na beira do fogão, nos serviços mais humildes e mal remunerados quando não na pilha de cadáveres insepultos. Quando acarajé vira bolinho de Satanás, o bicho pega…
Urrou certa vez o inominável: “Filho meu não casa com negra, já que foram educados”. Atrás de si, um deputado federal, preto retinto, mesmo sendo achincalhado, exibia a sorridente dentadura, talvez dizendo de si para consigo: “Pois é, é isso aí, conheço o meu lugar”. Passamos séculos varrendo sujeira para debaixo do tapete. Nunca quisemos enfrentar a dura realidade. Sempre evitamos o confronto em nome de uma paz que, no mais das vezes, é a dos cemitérios. Contudo, num belo dia, chega a hora da verdade, desaparecem as borrachinhas entre os cristais, o cão sai da garrafa. Há muito que o Brasil adia seu encontro consigo mesmo. Não fizemos o dever de casa quando foi o tempo e a História continua se repetindo, agora como farsa. E a vida segue em frente.