Um panorama da premiação IAB 2023


Roberto Ghione

1. O debate necessário

A premiação organizada pelo Instituto de Arquitetos do Brasil -IAB- oferece a oportunidade de conhecer, analisar e comparar ideias, paradigmas, preocupações e visões do exercício da profissão de colegas com compromisso e interesse em submeter suas produções à avaliação crítica. 

A cultura arquitetônica de uma sociedade só evolui se à par da produção de projetos e obras, existe uma consciência crítica que a pondere e posicione no contexto local e universal, estimulando um debate necessário para seu próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento.

A própria participação de colegas na premiação representa um debate inicial, que se complementa com o dos integrantes dos corpos de jurados. A intersubjetividade do processo decanta as produções que aqui se selecionam e apresentam, submetidas à subjetividade de quem analisa, escreve e divulga para conhecimento, interpretação e eventual discussão com pessoas interessadas no desenvolvimento da cultura arquitetônica.

Revela também, um dos objetivos essenciais do Instituto de Arquitetos do Brasil ao longo de sua existência centenária: promover e valorizar a produção de arquitetura como manifestação cultural e instrumento de transformação social.

A premiação 2023 apresenta 111 projetos, obras e outras atuações premiadas em 14 Departamentos Estaduais da entidade nas seguintes categorias: Cultura arquitetônica, 23 prêmios; Edificações e projetos, 40 prêmios; Interiores e design, 29 prêmios; Urbanismo, planejamento e cidades, 19 prêmios. Significa uma parte ínfima, porém amostra representativa de uma produção geral, que permite realizar uma leitura crítica dos caminhos percorridos por uma prática que se pretende comprometida com a cultura brasileira contemporânea.

No atual momento de profundas e aceleradas transformações no contexto global, com repercussões locais nos campos social, ambiental, político, cultural e operacional, verificam-se estratégias e atuações que persistem situações representativas de um tempo em processo de superação. De igual modo, novos valores e consciências em debate anunciam as pautas do Século 21 ainda em consolidação.

Entre velhas pautas que ainda não morreram e novas em processo de solidificação, esta pequena amostra da produção brasileira premiada apresenta uma diversidade de produtos e soluções que permitem traçar um panorama das preocupações profissionais num país de dimensões continentais, marcado pela chaga da persistente desigualdade que se manifesta nas paisagens construídas, nos conflitos urbanos, nas lutas pelas reformas urbana e rural, nas reivindicações sociais e nos diferentes tipos de exclusão.

Uma avaliação crítica preliminar revela assuntos a considerar e pretende estimular a reflexão acerca da produção de arquitetura e urbanismo com compromisso social, político e cultural.

2. Outros paradigmas

Em momentos de mudanças significativas manifestam-se inquietações comprometidas com pautas transformadoras, assumindo posicionamentos críticos a partir dos problemas revelados pelas próprias cidades, como a segregação nos espaços urbanos e suas consequentes reivindicações sociais.

A crítica de arquitetura e urbanismo assume outros paradigmas, militantes e fora do contexto exclusivamente acadêmico. Ações culturais propõem sair às ruas, dialogar com moradores, analisar sentimentos e afetos e compreender a apropriação dos espaços desde os diversos pontos de vista de quem de fato os habita.

Ações culturais que envolvem diversos atores sociais foram premiadas na categoria “Cultura Arquitetônica”. Dentre elas, o projeto Portas Abertas Experiências e aprendizagem cultural (Prêmio IAB CE, fig. 1) propõe valorizar a cultura artística, arquitetônica e urbanística sob diferentes olhares mediante eventos abertos, gratuitos e participativos; o projeto MAPA -Mapeamento, Análise, Prognóstico e Ações sustentáveis- (Prêmio IAB MG) promove ações urbanas em áreas de estruturas ferroviárias ligadas aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável; o Festival Jane’s Walks (Prêmio IAB PE, fig. 2) avalia comportamentos e apropriações nos espaços urbanos; o Guia (Co)Memorativo da Boa Vista (Prêmio IAB PE) valoriza o patrimônio cultural urbano a partir de afetos, valores e significados do lugar; o Movimento #vivacentroleste (Prêmio IAB SC, fig. 3) considera a requalificação urbana de áreas degradadas de centro de Florianópolis. 

A consciência social e urbana se revela também na produção de audiovisuais. Retratos falados, a cidade além do que vista e descrita (Prêmio IAB PB) considera as visões urbanas dos próprios moradores de uma pequena cidade de Rio Grande do Norte; Entre pontes (Prêmio IAB PE) retrata a vida dos moradores do bairro de Santo Antônio, Recife; Paisagem tendência- pesquisa artística, arquitetônica e multimídia (Prêmio IAB SC) analisa as transformações paisagísticas e urbanas de Balneário Camboriú, Itapema e Porto Belo provocadas pelo desenvolvimento imobiliário e turístico.  

Incorporar conceitos de arquitetura e cidade no ensino básico manifesta uma preocupação relacionada com a formação cidadã. Arquiteto e urbanista nas escolas: Aprendizagem sobre arquitetura e cidade para crianças (Prêmio IAB SE, fig. 4) é um projeto de extensão discutido no âmbito do programa CAU educa; Patrimônio cultural: ações educativas no Centro Histórico de Iguape (Prêmio IAB SP) compreende ações de educação patrimonial orientadas a estudantes de ensino fundamental, médio e professores da rede pública de educação; O Livro de Patrimônio Arquitetônico para crianças de zero a cem anos (Prêmio IAB PR), assim como Vou a pé (Prêmio IAB SP) são outras iniciativas comprometidas com a educação de crianças e adolescentes.

Nesta categoria foram premiados quatro projetos de arquiteturas permanente e efémeras (mais um projeto cénico) que retratam preocupações contemporâneas com a preservação de culturas ancestrais, com materiais, técnicas e processos sustentáveis, e com a exposição e debate de pautas contemporâneas relacionadas com a produção e apropriação dos espaços urbanos e arquitetônicos.

Experiências acadêmicas, como Ateliê 7: cidade e teoria – FAU Mackenzie (Prêmio IAB SP), e as edições dos livros: Os jardins de Burle Marx em Fortaleza (Prêmio IAB CE), Corpo e Espaço: Experiências Metodológicas no Ensino de Arquitetura e Urbanismo (Prêmio IAB PB), Avenida Brasil, rodovia metropolitana. Por um estatuto contemporâneo do espaço infraestrutural (Prêmio IAB RJ), Arquitetura Brasileira do Século XX – ensaios para uma história outra (Prêmio IAB RS, fig. 5), Lages em Detalhes: Arquitetura & Arte (Prêmio IAB SC) completam um quadro de premiações que revelam análises, registros, preocupações e paradigmas contemporâneos de crítica e atuações complementares aos projetos arquitetônicos e urbanísticos.

Fig. 1- Prêmio IAB CE. Portas Abertas. Experiências e aprendizagem cultural

Fig. 2- Prêmio IAB PE. Festival Jane’s Walks

Fig. 3 – Prêmio IAB SC. Movimento#vivacentroleste

Fig. 4- Prêmio IAB SE. Arquiteto e Urbanista nas escolas. Aprendizagem de arquitetura e cidade para crianças

Fig. 5- Prêmio IAB RS. Arquitetura Brasileira do Século XX – ensaios para uma história outra

3. Resistências

A desigualdade social e a diversidade cultural do Brasil promovem questões de reivindicação e visibilização de comunidades e grupos sociais historicamente excluídos. Resistências de processos culturais e produtivos, assim como lutas pelo direito à cidade, revelam conflitos que se tornam evidentes nas paisagens periféricas das grandes capitais e em áreas rurais de economias de subsistência. 

No campo da arquitetura, projetos destinados a grupos sociais resistentes assumem desafios diferenciados em relação às práticas e conhecimentos acadêmicos e profissionais convencionais. Utilização de recursos mínimos, tecnologia e materiais locais, muito diálogo e interpretação de necessidades e sentimentos, e adequação às condições climáticas possibilitam arquiteturas alternativas, singulares e providas de identidade. Fazer muito com pouco resulta uma provocação determinada pelas carências e necessidades, que conduzem à essência da prática profissional.

Três obras premiadas manifestam uma tendência que se pretende mais abrangente na produção brasileira. Poucas no contexto da premiação, mas suficientes para caracterizar uma questão destinada a definir identidades locais, autênticas e criativas, pensadas desde dentro e independentes de influências externas.

O Centro de Referência Quebradeiras de Babaçu (Prêmio IAB MA, fig. 6) representa a resistência de uma das 28 comunidades tradicionais brasileiras, formada majoritariamente por mulheres. Elas tratam o coco de babaçu como sustento familiar, ao mesmo tempo que perduram uma tradição cultural. O edifício premiado utiliza materiais e técnicas locais, propõe soluções sustentáveis e oferece reflexões acerca de soluções de projeto alternativas.

A Casa da Carnaúba de Várzea Queimada (Prêmio IAB CE, fig. 7) resolve com sensível simplicidade uma construção realizada em colaboração com a Associação de Mulheres Artesãs para abrigar atividades de extrativismo e beneficiação da carnaúba, promovendo um marco de desenvolvimento sustentável e preservação cultural na região.

A Praça do Mercado – Parque Realengo (Prêmio IAB RJ, fig. 8) representa a luta pelo direito à cidade de comunidades marginalizadas nas periferias das grandes capitais. Propõe um marco urbano de referência com recursos mínimos, que resolvem uma praça sombreada e o ordenamento do comercio do lugar.

Fig. 6– Prêmio IAB MA. Centro de Referência Quebradeiras de Babaçu

Fig. 7 – Prêmio IAB CE. Casa da Carnaúba de Várzea Queimada

Fig. 8 – Prêmio IAB RJ. Praça do Mercado- Parque Realengo

4. Sustentabilidade

Os desafios contemporâneos provocados pela queima de combustíveis fósseis, a emissão de gases de efeito estufa e as mudanças climáticas, repercutem nos comportamentos sociais e nos processos produtivos. Arquitetura e cidade possuem compromissos substanciais com essas questões, atentos aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável propostos pela Organização das Nações Unidas até o ano 2030.

Alguns projetos premiados afirmam o compromisso da sustentabilidade nas próprias propostas de materialização, assim como promovem objetivos sociais. Construções com materiais locais, renováveis e recicláveis, de baixo consumo de energia de produção e montagem, utilizados em projetos apropriados às paisagens, culturas e comportamentos humanos, promotores do desenvolvimento regional, poucos agressivos ao contexto físico e favoráveis a sistemas de conforto natural, representam paradigmas que marcam a cultura arquitetônica do nosso tempo.

Em contrapartida, obras e projetos premiados baseados no conforto artificial e materiais pouco adaptados a condições ambientais locais revelam a persistência de estratégias contrárias aos processos sustentáveis. Num país continental, com diferentes situações geográficas e variações climáticas, oportunidades de realizar projetos com identidade e criatividade são relegadas para resolver “arquitetura dentro da caixa”. Em contexto tropical, majoritariamente dominado por sol calcinante e brisas refrescantes, as sugestões construtivas, plásticas, estruturais, espaciais e de manejo da luz são incentivos criativos se as severas condicionantes são transformadas em oportunidades.

Dentre os projetos premiados, o Centro de Educação e Empreendedorismo nas comunidades do Rio Madeira (Prêmio IAB MA, fig. 9) propõe um projeto padrão de alto impacto social e baixo impacto ambiental destinado ao aprendizado e integração com a floresta de comunidades ribeirinhas amazónicas; o Centro Comercial e Praça pública em Atins (Prêmio IAB MA, fig. 10) se adapta à paisagem de uma área de sensibilidade ambiental com arquitetura leve, que explora materiais e técnicas locais; Refúgio do sol (Prêmio IAB CE, fig. 11) considera o uso de materiais tradicionais, como a taipa de pilão, para favorecer a inércia térmica, assim como sistemas de evapotranspiração para resolver uma pequena casa de campo; Cabana Zero (Prêmio IAB RJ, fig. 12) propõe um protótipo mínimo com materiais locais reciclados, integração na natureza e impacto ambiental zero; a Casa JM (Prêmio RS, fig. 13) resolve um projeto residencial com simplicidade, com tecnologia e materiais locais.

Fig. 9 – Prêmio IAB MA. Centro de Educação e Empreendedorismo nas comunidades do Rio Madeira

Fig. 9 – Prêmio IAB MA. Centro de Educação e Empreendedorismo nas comunidades do Rio Madeira

 

Fig. 11 – Prêmio IAB CE. Refúgio do sol

Fig. 12. Prêmio IAB RJ. Cabana Zero

Fig. 13. Prêmio IAB RS. Casa JM

5. Existente + novo

Projetar dentro de outro projeto, construir acima do construído, integrar o presente com o passado e criar a partir de ideias consolidadas são atuações que marcam a história da arquitetura, assim como a construção das cidades. 

Arquiteturas de interiores, reformas e ampliações, e novos edifícios integrados ao patrimônio arquitetônico consagrado são atuações habituais na realidade profissional do Brasil.

Dominante no campo de atuação profissional, arquitetura de interiores oferece amplas possibilidades derivadas das ofertas do mercado de trabalho e do marketing incisivo de empresas fornecedoras de móveis e peças complementares da arquitetura doméstica. De igual forma, abre campos de atuação para o design de mobiliário industrializado e planejados. 

Na categoria “Interiores e Design”, os produtos, obras e projetos apresentados abarcam uma variedade temática que compreende projetos domésticos, corporativos, comerciais, culturais, exposições e design.

Num contexto dominado pelo mercado de produtos e soluções padronizadas, destacam-se projetos que propõem diálogos entre pré-existências e novas intervenções (fig.14), apelos a materiais alternativos às ofertas e convenções do mercado (fig.15), soluções criativas para otimizar o uso dos espaços interiores (fig.16), projetos expositivos (fig.17) e produtos de design (fig.18).

Fig.14. Prêmio IAB RJ. Biblioteca integrada EBA FAU IPPUR

Fig. 15. Prêmio IAB DF. Apartamento Nômade

Fig. 16. Prêmio IAB RJ. Apartamento MG

Fig. 17. Prêmio IAB SP. Expografia Japão em miniaturas – Tatsuya Tanaka

Fig. 18. Prêmio IAB MS. Namoradeira – Musa Pantaneira

Nas intervenções em edifícios de valor patrimonial, o contraste entre diferentes momentos históricos é um atributo criativo que permite incorporar novos usos preservando a memória social.

O projeto Túnel do tempo (Prêmio IAB RS, fig. 19) propõe um Centro de inovação e economia criativa e uma Escola municipal de artes conectando um novo edifício com um bem tombado nos níveis municipal e estadual. Na articulação entre ambos, um espaço aberto integra os domínios público e privado, valorizando a paisagem urbana e estimulando novos usos na cidade.

O projeto Palacete 276 (Prêmio IAB PB, fig. 20) propõe a restauração de um conjunto eclético localizado no centro de João Pessoa, em área de preservação rigorosa. O projeto inclui a preservação das espécies vegetais de um terreno de 4,5 mil m², incorporando um valioso espaço aberto ao acesso público.

O Museu da vacina – Instituto Butantan (Prêmio IAB SP, fig. 21) é uma intervenção em edifício existente que revela suas camadas históricas integradas com a intervenção contemporânea, atenta aos critérios e teorias do Restauro crítico.

Fig. 19. Prêmio IAB RS. Túnel do tempo

Fig. 20. Prêmio IAB PB. Palacete 276

Fig. 21. Prêmio IAB SP. Museu da Vacina – Instituto Butantan

6. Laboratório de ideias

A categoria “Edificações e Projetos” evidencia com precisão os valores sociais, urbanos e culturais que subjazem na prática profissional. Eles constituem argumentos sólidos, cuja interpretação permite elucidar ideologias reveladas pela própria materialidade projetada ou construída.

Nesse contexto, 43% dos prêmios correspondem a projetos e obras de casas. Este fato, assim como a variedade de soluções registradas, revela esta tipologia como laboratório de ideias, campo de experimentação de técnicas, materiais, relacionamento com paisagens naturais, espacialidades e integração entre interiores e exteriores.

A maioria localizada em condomínios fechados ou em áreas naturais fora das cidades, o caráter de “objeto isolado” (panaceia da arquitetura moderna para “descontaminar” e manifestar seu estado puro) perdura uma tradição cara à cultura brasileira, que motivou seu reconhecimento internacional no século 20.

Persistências da cultura moderna de Brasília se verificam na Casa dos tijolos brancos (Prêmio IAB DF, fig. 22), com o tratamento sensível de um material só para resolver plasticidades e efeitos de luzes e sombras, enquanto a Casa Jacuhy (Prêmio IAB ES, fig. 23) apela a volumetrias e materiais da tradição brutalista.

Sensibilidade com a natureza verificam-se na Casa Cancha (Prêmio IAB MG, fig. 24), cuja materialidade se integra com pedras do lugar, e na Casa na Bocaina (Prêmio IAB SP, fig. 25), que contrasta uma geometria precisa com a exuberância da paisagem natural.

A Casa Thai (Prêmio IAB SE, fig. 26) explora as possibilidades do tijolo maciço, seus efeitos de luzes e sombras, transparências e texturas, enquanto a Casagranda (Prêmio IAB RS, fig. 27) define uma interessante integração de espaços internos e externos mediante a geometria adaptada às condições do terreno.

A Casa Cubo (Prêmio IAB MS, fig. 28) e a Casa 3×4 (Prêmio IAB SC, fig. 29) se resolvem com estruturas de madeira e cobertas em telha termoacústica. A Casa Lazer (Prêmio IAB PR. Fig. 30) apela às expressões do tijolo maciço e estrutura de concreto aparentes, enquanto a Casa das Vidocas (Prêmio IAB CE, fig. 31) se resolve com blocos de concreto, lajes treliçadas, cimento queimado, ladrilhos hidráulicos e instalações aparentes.

A diversidade registrada evidencia o domínio de técnicas construtivas e estratégias de projeto orientadas a materializar arquiteturas qualificadas de natureza autônoma. Os tratamentos plásticos exploram as características e possibilidades tectônicas dos materiais com competência profissional em atuações isoladas de contextos urbanos. 

Fig.  22. Prêmio IAB DF. Casa dos tijolos brancos

Fig. 23. Prêmio IAB ES. Casa Jacuhy

Fig. 24. Prêmio IAB MG. Casa Cancha

Fig. 25. Prêmio IAB SP. Casa na Bocaina

Fig. 26. Prêmio IAB SE. Casa Thai

Fig. 27. Prêmio IAB RS. Casagranda

Fig. 27. Prêmio IAB RS. Casagranda

Fig. 29. Prêmio IAB SC. Casa 3×4

Fig. 30. Prêmio IAB PR. Casa Lazer

Fig. 31. Prêmio IAB CE. Casa das Vidocas

7. Arquitetura e cidade

As paisagens urbanas das grandes e médias cidades brasileiras evidenciam um divórcio entre arquitetura e urbanismo. Carente de gestos de integração, a maioria da produção de obras e projetos se revela contrária a conceitos mínimos e essenciais de urbanidade. 

Contribui para esta situação a imutável desigualdade social, que puxa o “mercado” para soluções de projetos defensivos, excludentes e segregadores, promovendo um circuito viciado que torna a produção de arquitetura cúmplice de um processo que agride a convivência civilizada e promove a violência.

Autoproclamados “arquitetos e urbanistas” desde a criação do conselho profissional, a realidade revela que pouco sabemos desses importantes campos do conhecimento, integrados em essência e separados na prática. A própria arquitetura possui a atribuição de resolver a urbanidade nos espaços de contato entre os domínios público e privado, gesto pouco frequente entre as obras e projetos premiados. De igual forma, a concepção urbanística deve prever e legislar os tipos arquitetônicos que ocuparão o solo, definirão o espaço urbano e promoverão o convívio social prevendo a materialidade e sociabilidade de decisões que hoje ficam, no geral, no campo da abstração.

A premiação evidencia uma persistente divisão entre os profissionais que fazem “projetos de arquitetura” (geralmente desconexos de contextos urbanos), e os que fazem “urbanismo”, referido a planos diretores, revitalizações de espaços urbanos, assim como parques, praças e tratamento de espaços públicos.

Dentre as obras e projetos premiados, alguns tem implicância urbanística pela própria natureza, enquanto outros por iniciativa dos projetistas. O Terminal Intermodal Gentileza (Prêmio IAB RJ, fig. 32) resolve com racionalidade a integração de três modais de transporte público com uma proposta sensível a elementos da paisagem urbana. O Mercado Municipal de Ponta Grossa (Prêmio IAB PR, fig. 33) define uma praça pública integrada ao edifício projetado. As mencionadas intervenções em edifícios tombados Túnel do tempo (Prêmio IAB RS, fig. 19) e Palacete 276 (Prêmio IAB PB, fog. 20) propõem estender o espaço público dentro das áreas abertas projetadas. A Casa F&R (Prêmio IAB DF, fig. 34) cria uma interessante sequência de espaços interiores integrados com as oportunidades oferecidas pela localização urbana, entre uma rua de serviço e um parque público. A Igreja Granada (Prêmio IAB SP, fig. 35) provoca um pequeno gesto urbano de abertura de uma calçada em esquina, derivado da geometria de um espaço de planta elíptica. O Café Odê (Prêmio IAB SP, fig. 36) integra a calçada urbana e o espaço interior com o mesmo pavimento. Os Novos quiosques urbanos da Praia de Boa Viagem (Prêmio IAB PE, fig. 37) possuem implicância urbana pela sequência de implantação, porém apresentado como um objeto autônomo, situação que revela a visão fragmentada e o divórcio entre arquitetura e cidade.

Na categoria “Urbanismo, Planejamento e Cidades” foram premiados Parques em áreas centrais e periféricas, promovendo o desenvolvimento de espaços urbanos críticos, subutilizados ou estimulantes da integração social, assim como Praças, Projetos de revitalização e expansão urbana, Planos diretores e Equipamentos públicos (figs. 38 – 43).

Estas atuações provenientes do poder público, essenciais para a qualificação urbanística das cidades e para a promoção social dos habitantes, são extremamente necessárias, porém insuficientes para uma transformação significativa de um país com enormes possibilidades de desenvolvimento. Superar o apontado divórcio entre arquitetura e urbanismo, entre atuações públicas e privadas, assim como compreender e explorar potenciais contribuições urbanas de cada projeto de arquitetura, representa um dos maiores desafios profissionais em pós de cidades civilizadas e integradas se consideramos o relevante aporte social desses campos de conhecimento, conceitualmente integrados, mas fragmentados na prática.

Fig. 32. Prêmio IAB RJ. Terminal Intermodal Gentileza

Fig, 33. Prêmio IAB PR. Mercado de Ponta Grossa

Fig. 34. Prêmio IAB DF. Casa F&R

Fig. 35. Prêmio IAB SP. Igreja Granada

Fig. 36. Prêmio IAB SP. Café Odé

Fig. 37. Prêmio IAB PE. Novos quiosques urbanos da Praia de Boa Viagem

Fig. 38. Prêmio IAB CE. Requalificação Urbano- Arquitetônica do Parque da Liberdade. Cidade da criança. Fortaleza

Fig. 39. Prêmio IAB MA. Parque urbano Igarapé São Joaquim. Belém

Fig. 40. Prêmio IAB PE. Praça Dom Miguel Valverde

Fig, 41. Prêmio IAB RJ. Parque Pavuna. Esporte, lazer e cultura na Zona Norte do Rio de Janeiro

Fig. 42. Prêmio IAB SC. Quando vamos começar o ontem

Fig. 43. Prêmio IAB SP. Guaicuri: um projeto de habitação social e melhoria urbana

8. Ausências 

No panorama de obras e projetos analisados, algumas ausências revelam desafios postergados do nosso tempo. Algumas delas podem ser justificadas pelo período de barbárie institucional instalada durante seis anos no Governo Federal, que provocou enormes atrasos na implementação de políticas públicas relacionadas diretamente com a produção de arquitetura e urbanismo, especialmente de Habitação Social, campo de atuação profissional de sensível compromisso social e urbano.

Sentida ausência de projetos que contemplem a implementação efetiva da Lei 11.888/2008, de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social -ATHIS-, que estimula a melhoria de moradias em áreas rurais, periferias urbanas, favelas e outras situações reveladoras da pobreza e desigualdade que degrada nossa sociedade. Junto com eles, qualificação e dignificação de espaços urbanos e dotação de serviços e equipamentos públicos, promovendo uma efetiva integração entre arquitetura e urbanismo, alimentam desafios profissionais e esperanças de contribuir com legítimos processos de desenvolvimento urbano, ambiental e humano. 

Atuação em áreas centrais subutilizadas de muitas cidades brasileiras é outra ausência que pretendemos ver sanada em atuações profissionais que revitalizem valiosos patrimônios urbanos e culturais degradados, promovendo o destino para habitação e serviços sociais, assim como justiça social e racionalidade nas ocupações do solo e operatividade urbana. 

A construção de novas moradias populares é outra ausência que merece ser debatida e reconsiderada, promovendo a superação do conceito de “habitacional”, conjuntos padronizados que criam ilhas de exclusão e preconceito social. Novas moradias oferecem oportunidades de “fazer cidade” através da configuração de espaços urbanos, variedade tipológica, usos variados e outras estratégias integradoras de arquitetura e urbanismo.

A habitação social oferece também campos de atuação na arquitetura de interiores, mediante elaboração de pesquisas e protótipos de racionalização e otimização de espaços de dimensões reduzidas adaptados às necessidades, vivências e cultura populares. De igual modo, o design de peças e processos de autoconstrução de mobiliário revela oportunidades profissionais tendentes a complementar e superar o atual status de produtos para classes sociais média e alta. 

Finalmente, a sentida ausência de projetos de residências coletivas, tal vez o tipo mais frequente de construção e alheio à premiação. Capturados pelo mercado imobiliário, esses projetos, em geral fechados e defensivos, contrariam conceitos básicos de urbanidade, promovendo degradação urbana e social. 

Edifícios residenciais são obras de destaque da arquitetura brasileira do Século 20. Estranha a marcada ausência de propostas com algum gesto mínimo de urbanidade que supere as receitas do mercado. Apenas a mencionada urbanização Guaicuri (Prêmio IAB SP, fig. 43), assim como o Edifício Lapa I (Prêmio IAB PR, fig. 44), que propõe usos comerciais no pavimento térreo e integração na escala da pequena cidade, representam poucos exemplos no contexto da dimensão continental do Brasil e da participação na indústria da construção civil.

Essa tipologia representa talvez um dos maiores desafios para promover a urbanidade nas cidades brasileiras. Uma visão integrada entre arquitetura e urbanismo torna-se prioridade, especialmente desde a elaboração de Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano, instrumento possibilitador de uma efetiva transformação civilizatória desde nosso campo de atuação.

Em relação à atuação profissional independente, superar a visão autônoma na produção de projetos, assumindo concepções integradas com o contexto urbano tendentes a “fazer cidade” e não apenas a “construir objetos”, torna-se um desafio digno da nossa autoproclamada condição de “arquitetos e urbanistas”.

Fig. 44. Prêmio IAB PR. Edifício Lapa I

Roberto Ghione, Arquiteto formado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Especializado em Crítica arquitetônica, Preservação do patrimônio e Planejamento urbano pela Universidad Católica de Córdoba. Titular do escritório VPRG, Vera Pires, Roberto Ghione Arquitetos associados. Presidente do IAB PE 2017/2019. Atual Vice-presidente do IAB Região Nordeste.